Hoje bem cedo, ainda na cama, Clarice lembrou-me que cada coisa é uma palavra.
Fiquei a ruminar sobre a passagem da Hora da Estrela, e mais, a conferir preguiçosamente até aonde vão as pernas da afirmação.A marina de Dorian Gray dependurada em frente, a nostalgia daquele universo diáfano, um nome para cada cor. O espelho comprido a um canto que não me reflete, fonte de revelação e decepção. Da música de Miles Davis, que acabo de tocar, a harmonia que desejo para esta manhã. A elegância do Concierto de Aranjuez, melodia concebida para arranjo de violão clássico e orquestra, e gravada pelo genial Miles com trompete apenas. Um parafuso ali esquecido na bancada, agora imprestável após uma força desproporcional, por isso o adjetivo, estuprado.
Na realidade me toco, ao contrário do que diz Clarice, nem todas as coisas estão nomeadas. As línguas não abarcam tudo. Nem quero relembrar o questionável só é possível filosofar em alemão, de Caetano.
A saudade, esse sentimento que nos enche o corpo e a a alma, comum à criatura humana seja daqui, da Manchúria, de Serra Leoa, dos Paises Bascos, apenas o português e o árabe têm vocábulos para dizê-la. Alguns podem até morrer de saudade, mas, chamá-la pelo nome, só a nós e aos árabes é possível fazê-lo.
Povos africanos — de Moçambique, me parece —, por medo ou superstição, não criam palavra para determinadas coisas ou sentimentos para não atraí-los. Tristeza, uma delas.
Se não existe o nome, imaginam, o sentimento fica mais difícil achegar-se. Ideia semelhante também no nordeste profundo de todos nós, de que determinadas palavras atraem coisas ruins. Não dizê-las; no caso, sequer fazê-las existir.
Como não existir também as bombas, os mísseis, que caem agora em Jerusalém e na Faixa de Gaza sobre crianças e anciãos acamados. Carregam consigo o combustível letal e abominável que responde pelo nome de estupidez humana. E quando a imprensa mundial reporta-se sobre o massacre, a manchete é quase sempre cínica: Guerra renhida entre palestinos e judeus. Guerra, que Guerra, cara-pálida?
Outra imagem da semana: bebê marroquino lívido, frio, sem responder a estímulos, no lastro de uma barcaça, em companhia dos pais, e de mais 8 mil africanos que tentam por todos os meios e águas chegar à Espanha, e quem sabe escapar da fome, da miséria. O aparato policial impedindo, devolvendo-os à morte.
Os discursos contraditórios da União Europeia. A Europa civilizada, oráculo e palmatória do mundo, de costas às palavras da moda que adora pronunciar, cobrar e ensinar aos coitados terceiro-mundistas: empatia, humanização, solidariedade.
A empatia só lhes aparece na hora de contar os cadáveres.
Não será por acaso genocídio apropriar-se das vacinas fabricadas em todo o mundo para combater a pandemia?
Por que os países ricos, que detém apenas 13% da população do planeta, negociarem mais de 70% da produção mundial de imunizantes?
A África conseguiu comprar um 2% de sua necessidade.
Os EEUU que estocaram milhões de vacinas, um excedente pra humilhar, agora atraem turistas usando a promessa de imunização como moeda de troca; imunizam crianças cujos estudos não comprovam estatisticamente sua necessidade, e atraem a clientela refratária com oferta de vacina, batata frita e, provavelmente, catchup.
Um escárnio. O topo do poder econômico e político mundial sem gesto de compaixão. O que os ricos americanos e europeus fizeram para assistir os desvalidos da pandemia?
Quando o Brasil atingiu as mais de três mil mortes/dia por Covid, uma tragédia com todas as tintas, nenhum país do dito primeiro-mundo compadeceu-se, estirando a mão com ajuda, vacina, ou algum consolo. Silêncio e desprezo.
A audição chega agora (costumo escrever com a música nas alturas) às lindas canções do Led Zeppelin. Uma que tenho adoração — pela estranheza e força poética, Stairway to Heaven:
Há uma dama que acredita
Que tudo o que brilha é ouro
E ela está comprando
Uma escada para o paraíso
E quando chega lá percebe que
Com uma palavra
Ela consegue o que foi buscar.
Napoleão Veras
Tela: Joan Miró
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