percorro esta estrada chamada de existência, quase sempre, acompanhada de uma trilha sonora com
pitadas de nostalgia, sem esquecer, logicamente, os vários cadernos de anotações e rabiscos.
Tenho uma resistência beirando à patologia, por assim dizer, ao uso do Kindle ou quaisquer
equipamentos modernos tentando usurpar-me o significado e o significante do papel.
Toquinho, não obstante jamais saber quem eu sou, de onde vim e para onde irei, ao compor a canção
Caderno, descreveu a tamanha relevância desse amontoado de folhas entrelaçadas por espirais tão
palpáveis, quanto inspiradores.
Repito, neste janeiro de coincidências, os primeiros tópicos deste texto foram escritos manualmente no
antigo caderno de música de Francisco. Tenho, como costume, a deliciosa mania de não me desfazer de
papéis. Penso representarem, além da história da construção linguística, uma união de sentimentos e
sensações codificados em linhas pautadas de aprendizados diversos.
Este caderno, a exemplo de outros tantos, permanece intacto, ou seja, as folhas antecedentes não foram
para o lixo. E, tão somente por isso, consigo enxergar a beleza do passado nas notas musicais de Asa
Branca, música aprendida por Chico ano passado. A flauta, o sopro da vida, Asa Branca, o sopro da arte, os alfarrábios, um suspiro de amor.
Constância Uchôa, uma amiga querida, escritora e poetisa de altíssimo quilate compartilha comigo da
patológica teimosia de se recusar a ler através das telas.
Ela também gosta do cheiro de livro, costuma fazer grifos, rabiscos e anotações nas laterais de cada
parágrafo devorado e degustado por ela.
Não diferente de mim, a poetisa seridoense valoriza o papel e não abre mão da sensação de concluir
uma obra contemplando o trajeto vencido através dos rastros coloridos de incontáveis marca-textos. A
minha dileta amiga não incentiva aquisições de Kindle, tablets ou qualquer engenhoca tecnológica que
esteja na moda. Tenho a impressão de nós duas estarmos na contramão do mundo contemporâneo.
A conversa entre nós é longa, nossas pautas são tão intermináveis quanto às madrugadas sombrias, as
inquietações filosóficas, então, acabar-se-ão quando o mar secar, a saber, no dia de são nunca de tarde.
Ou seja, como dizia Nietzsche, ficarão no nadidismo do nada. Deixemos o niilismo no congelador.
Prometo, doravante, tentar sair da saborosa e atormentadora abstração inerente aos escritores e poetas.
Farei uma breve reflexão sobre a modernidade e os desdobramentos no cotidiano atual.
Mesmo odiado gerúndios, linguagem usada pelas operadoras de telemarketing para tirar qualquer
vivente do sério, traio a mim mesma quando digo estar querendo e quase conseguindo conversar com o
nostálgico, sensacional e controverso filósofo alemão, romântico e racional ao mesmo tempo. Difícil
juntar esses dois rótulos num sujeito só. Para alguns, desconexo, paradoxal, incoerente. Para outros, o
encantamento dos avessos, a plenitude dos contrários e a magnitude de uma mente magistral.
Pois bem, o que Nietzsche diria a nosso respeito sendo o que somos hoje?
Uma sociedade infantilizada, escrava de carências e desejos, egocêntrica ao extremo e, na imensa
maioria das vezes, individualista e narcisista.
Sujeitos “mimados”, desqualificados emocionais, incapazes de suportar frustrações.
Homens e mulheres sem fracassos, sem chagas, cada qual ostentando um coach para chamar de seu e, o
pior, acreditando genuinamente nas mentiras contemporâneas.
Para fugir de suas realidades banhadas de lama, vivem a postar e repostar modelos de vida perfeitos,
brilham os olhos com míseros likes recebidos em redes sociais que mais parecem propagandas de
margarina.
Gente feliz o tempo inteiro significa uma geração incapaz de pensar com a própria cabeça.
Friedrich, certamente, iria “tocar a real”. Jamais omitir-se-ia. Daria uma situada geral na galera,
explicando ser a potência/força vital algo para ser exercido com dignidade e decência. O esplendor da
vida não nasce debaixo de preceitos rasteiros, não podendo e nem devendo ser submetido a uma nefasta
inversão de valores, onde o ser e o ter confundem-se e conflitam-se entre si.
Só se é quando tem, quem não tem, nada o é. O saldo das contas bancárias e as Ferraris estacionadas
em garagens de residências suntuosas são o RG da modernidade. O Instagram tomou o lugar da
profundidade e da intensidade dos instantes. A preocupação em mostrar um prato bonito em um
restaurante elegante tem mais importância do que o momento ou a companhia. Não precisa ser feliz,
basta apenas parecer ser.
A felicidade real está distante e o caminho foi perdido. Os valores éticos e morais construídos em cada
passo, em cada esquina, em cada gesto de compaixão dissiparam-se nessa atmosfera horrenda.
Nietzsche era ateu, segundo ele, Deus estava morto. Nós havíamos o matado.
Em uma de suas obras, o romântico alemão e o alemão romântico resolveu uma querela filosófica entre
os irmãos Karamazov, de Dostoiévski. O cerne da questão era o fato da inexistência de Deus ser o
motivo para ninguém optar pelo em, já que o mal praticado não estaria sob a égide de qualquer punição
na eternidade. Friedrich, imerso em ateísmo, ceticismo, racionalismo, cientificismo, fiel seguidor da
Filosofia Materialista de Lucrécio, também acreditava ser o universo um conglomerado de átomos e
partículas vagando no infinito no nada.
O Professor pagão, em doces e sábias palavras, nos revelou a grandeza de nós mesmos. Deus não
precisa existir, sequer enviar Kant para escrever normativos categóricos para regular o comportamento
humano. Muito pelo contrário, o Mestre ateu nos conclama à coragem de viver em plenitude. Devemos
ser bons, éticos, fortes, ainda que não haja ninguém olhando.
A ética e a moral, conceitos praticamente idênticos na Filosofia Clássica, são a única formula real,
consistente e capaz de promover a felicidade, a paz social e a união dos povos.
Nietzsche continua com a razão andando na mesma intensidade da capacidade dele de fazer inimigos.
Deus não precisa existir dessa maneira, tampouco com esses propósitos. A bem da verdade, no decorrer
da história da humanidade, matar em nome de Deus é fato recorrente. De outra banda, fazer o bem em
nome de Deus não seria mais interessante?
No meu ponto de vista, como uma mera espectadora do meu mundinho, vislumbro uma sociedade
publicitando virtudes de indivíduos sem qualquer autonomia moral para coisa alguma. Por óbvio, Deus
é prescindível! Os deuses contemporâneos usurpam a Soberania do Sagrado todas as vezes que, de
forma cruel, julgam-se entidades superiores, oprimindo e condenando seus semelhantes. O motivo do
pacote de maldades é simplório, Senhores. Para ser vítima dessa sujeirada toda, basta não dar likes, não
aplaudir e não compactuar com as ridículas ideias e ideais dos “corretinhos” modernos.
Virtudes propagadas perdem seu valor. Isso é consenso até entre Aristóteles e Jesus. As sobras, os
restos, o lixo, é puro branning, marketing, picaretice e hipocrisia. É o indigesto resultado de uma
manada de mentalidades mergulhadas em profundos abismos morais. O amor, a coragem, a tolerância e
a paciência são diariamente esmagados por egos hedonistas e narcisistas de sujeitos cujos vínculos
afetivos pueris e gasosos só conseguem se sustentar pelo tempo cronológico dos stories de um
Instagram qualquer.
Que saudade da liquidez de Zygmunt Bauman!
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