Estes dias que transformaram todos os brasileiros em magistrados do STF –magistrados, ao menos, no juízo que todos fazemos dos votos dos supremos juízes— também serviram para educar o Brasil. O país aprendeu que o vocábulo justiça está contido na palavra injustiça. O acaso rege o universo mais do que gostaríamos de imaginar. Mas o destino parece ter decidido conspirar a favor do onírico na posse de Joaquim Barbosa, 58, na presidência do Supremo Tribunal Federal. É como se o aleatório quisesse realçar que o possível também cabe no impossível.
O ministro do Supremo sempe foi visto como um semideus, sentado à mão direita de Deus. A posse de Barbosa no comando so STF mostrou que a onipotência das togas tem limites. A cerimônia começou bem, com um tombo. E terminou melhor, com um discurso simples e direto. O ministro caiu minutos antes de alçar-se à glória. Conversava num salão contíguo ao plenário com o colega Ricardo Lewandowski, seu vice, e com a ex-ministra Ellen Gracie. Súbito, deu um passo atrás, esbarrou num tablado montado para a foto oficial e foi ao chão. Ergueu-se pouco depois, no pronunciamento que dirigiu à plateia.
Foi um discurso impregnado de simbologia. Uma fala em que o novo presidente da Suprema Corte iluminou o caráter utilitário da Justiça. Almejamos um Judiciário “sem firulas, sem floreios, sem rapapés”, ele disse. Um Judiciário “célere e justo”.
O bom juiz, afirmou Barbosa, é aquele que tem consciência dos limites que são impostos pela sua condição funcional. No dizer do ministro, pertence ao passado o juiz que se mantém distante e indiferente aos anseios da sociedade, o juiz isolado, o juiz ecerrado na torre de marfim. O novo juiz, realçou Barbosa, não adere cegamente aos clamores da comunidade. Mas também não vira as costas para a sociedade.
A justiça é humana, declarou Barbosa, se auto-dessacralizando. A Justiça é indissociável da noção de igualdade, ele acrescentou. Deu boa tarde ao óbvio: o cidadão tem “o sagrado direito” de ser tratado de forma igual. Simples como o abecedário. O brasileiro A não deve ter senão a mesma consideração dispensada ao brasileiro C ou B, lecionou Barbosa.
Ele voltou a cumprimentar o óbvio ao dizer que sua honestidade intelectual o leva a reconhecer que há “um déficit de justiça entre nós, nem todos os brasileiros são tratados com igual consideração. O que se vê aqui e acola é o tratamento privilegiado”. Disse isso num instante em que o Supremo demonstra no julgamento do mensalão que o Judiciário onírico, capaz de punir o que sempre foi impune, tornou-se palpável.
Todas as igrejas –inclusive a da roubalheira mística, fundada há séculos, provavelmente na era das caravelas— têm metafísicas antigas e hierarquizadas. O que Barbosa disse, com outras palavras, foi o seguinte: conscientizando-se de sua dimensão humana, percebendo que seu limite funcional é a prestação de serviços ao rebanho que financia a congregação, a seita do Judiciário pode tudo. Pode inclusive punir o poder aético.
Festejado como primeiro negro a sentar-se na cadeira de presidente do STF, Barbosa absteve-se de fazer da cor da pele um diferencial redentor. Esquivou-se de evocar o passado de menino preto e pobre. Não precisava. Nunca antes na história desse país o plenário do STF esteve tão apinhado de rostos negros. O pai, pedreiro, morreu há dois anos. Mas lá estava a mãe, dona de casa. Lá estava o filho. Lá estavam os irmãos do ministro. Lá estavam também os artistas negros.
Barbosa deve a ascensão ao Supremo à sua cor. Em 2003, quando decidiu indicá-lo, Lula encomendou a Márcio Thomaz Bastos que encontrasse um magistrado negro. Queria emprestar à indicação um caráter racial. O ex-soberano não suspeitava, mas Thomaz Bastos fora além da encomenda. Achara um magistrado independente. Um Joaquim que parece ter a noção de que o juiz pode ser de qualquer cor, só não tem o direito de ser invisível. Sob pena de perder o escalpo na hora que os peles-vermelhas atacarem. Que Oxossi, o orixá dos caçadores, o proteja das macumbas.
Fonte: Josias de Souza
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