Com poucos leitos hospitalares em cidades pequenas, doentes transferidos levaram vírus de volta a centros urbanos maiores que o exportavam, mostra estudo
A má distribuição de leitos de UTI no Brasil provocou um "efeito bumerangue" em 2020, fazendo doentes de Covid-19 levarem o vírus de volta às capitais que o tinham espalhado inicialmente. Esse fenômeno, combinado com a demora na adoção de distanciamento social nos grandes centros urbanos e com a falta de bloqueios rodoviários no país, explica o padrão explosivo de espalhamento geográfico do coronavírus em 2020, afirma um novo estudo.
Liderada pelo neurocientista Miguel Nicolelis, da Universidade Duke, dos EUA, a pesquisa mapeou o dia a dia da transmissão do coronavírus e as taxas de mortalidade de cada macrorregião de saúde (grupo de municípios no país) entre março e agosto do ano passado. O trabalho teve entre coautores o ecólogo Rafael Raimundo, professor da Universidade Federal da Paraíba.
Para entender como a doença se espalhou, os pesquisadores sobrepuseram os padrões vistos no espalhamento da doença sobre modelos da malha rodoviária do país e do mapa de infraestrutura médica.
O efeito bumerangue, explicam, é uma consequência natural da desigualdade regional no país. Como muitos municípios possuem poucos leitos de UTI, é natural numa epidemia ocorrer um fluxo de pessoas doentes com Covid-19 de volta para as capitais, num movimento circular perene que intensificou a presença da pandemia em todas as regiões.
Criticando a lentidão e inadequação da resposta do governo federal à pandemia, os cientistas apontam que, antes de existir vacina disponível para Covid-19, "dezenas de milhares de mortes" poderiam ter sido evitadas com três conjuntos de medidas.
"Se um lockdown tive sido imposto mais cedo nas capitais disseminadoras, se restrições obrigatórias de tráfego rodoviário tivessem sido aplicadas e se existisse uma distribuição geográfica de leitos de UTI mais equânime, o impacto da Covid-19 no Brasil poderia ter sido significativamente menor", escrevem os cientistas.
As conclusões do trabalho estão em artigo científico publicado nesta segunda-feira na revista Scientific Reports, do grupo Nature. Também participaram do trabalho os pesquisadores Pedro Peixoto, da USP, e Cecília Andreazzi, da Fiocruz.
Já se sabia que as capitais tiveram um papel crucial na dinâmica da Covid-19, e o novo estudo conseguiu quantificar sua participação. Nos três primeiros meses de epidemia, São Paulo sozinha foi responsável por mais de 85% do espalhamento da Covid-19 no Brasil, por ser o maior hub aeroviário e rodoviário do país. Quando observadas as 17 cidades mais conectadas do país, em vários estados, estas teriam sido responsáveis por mais de 98% do espalhamento.
O trabalho também aponta que um grupo de 26 rodovias serviu como rede de disseminação para 30% dos casos exportados da doença. O efeito bumerangue se deu basicamente por terra, com pacientes de Covid-19 sendo transferidos a hospitais nas capitais. São Paulo recebeu doentes de outras 464 cidades (de todo o Brasil, não só dos municípios mais próximos); Belo Horizonte, de 351 outras; e Salvador de mais 332, nas contas dos cientistas.
"Nossos resultados mostraram que a magnitude exacerbada do 'efeito bumerangue' expôs a necessidade de se instalar uma infraestrutura hospitalar de maior porte, incluindo mais leitos de UTI no interior brasileiro, para melhor assistir às demandas da população interiorana", afirmou Raimundo, da Universidade Federal da Paraíba, em comunicado à imprensa.
Fonte:O Globo
Foto: Nicolelis Etal
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