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terça-feira, 9 de julho de 2019

JOÃO GILBERTO e ZUÍLA. POR NAPOLEÃO VERAS.

Porque muita coisa adere à memória sem que saibamos a razão, como uma intimidade que se estabelece entre nós e algum fato - sem explicação plausível -, simples ocorrência a nos deixar grudados à raridade.
Se ficarmos no plano dos acontecimentos, sobretudo das grandes comoções, é mais fácil explicar tal memorização.
Onde estávamos quando o anúncio do assassinato de Kennedy, de John Lennon, a descida do homem à lua, a noite de Chernobyl, o gol de Carlos Alberto final da Copa de 70, a primeira audição dos Beatles, em que manhã, tarde ou noite o nascimento do primogênito, e um mundo mais de novidades, o museu de grandes novidades, de Cazuza.
Sempre me celebrei pelo fato de lembrar com detalhes, sem exagerar sequer na luz da tarde exata em que ouvi pela primeira vez a bela Chega de Saudade.
Com o encantamento agora do grande João Gilberto, dei-me conta, não sem um travo de frustração, que uma banda do mundo também se lembrava do sublime acontecimento.
E passei a ouvi-los. Diz um, ouvi primeiro no rádio à vela, anterior à pilha, ao transistor; outro, um amigo me presenteou o long-play, o primeiro do João bossa-novista; ou ainda, ouvi num programa da Rádio Poty ou da Rádio Sociedade da Bahia; e segue cada qual com suas lembranças de como foi apresentado ao clássico de João, Tom e Vinicius.
Que muita gente da música, ou dos seus entornos, se lembre com exatidão daquele lançamento é compreensível, no que pesem 60 anos.
Agora, como explicar o menino que foi apenas comprar cocada no hotel de Alecrides, ali no Beco do Açougue, Alexandria, finalzinho dos anos 50, começo dos 60, e de repente se depara com ZUÍLA, jovem talentosa sanfoneira, filha da dona do hotel, com sua sanfona de 120 baixos, refinadíssima, tocando num salão para poucos aquela música divina que só bem depois vim a saber tratar-se da revolução chamada Chega de Saudade?
Dela carreguei a vida inteira, como tatuagem, os versos:
’Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos
Que eu darei na sua boca.’
Certamente a poesia, mesmo mágica, não conseguiria sobreviver, nem levar tão longe essa memória.
Havia ali o novo, o inusitado, o inaugural, o canto sussurrado, uma bossa nova literal, longe de tudo ouvido até então, sobretudo naquela cidadezinha de pé de serra, cativa dos vozeirões de Augusto Calheiros, VIcente Celestino, Nelson Golçalves, Orlando Silva, Cauby e tantos outros grandiloqüentes.
Toda a geração sentiu-se prontamente identificada com o canto novo, com aquela conversa musicada, longe dos discursos empostados de então. Os versos urbanos faziam-na liberar as emoções, e nos sentir representados na nova linguagem, num país que trocava de pele.
Não mais que de repente dividiu-se entre os que estavam com a bossa nova, ou com a bossa velha.
Quando me perguntavam: e você está com quem? Como membro da legião anônima dos espíritos de contradição em que nos transformamos, não hesitava:
Eu sou da bossa nova!
(Por menos que entendesse o que se passava).


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