Fragilidade do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) faz com que espera na fila por órgão dure mais de uma década.
O telefone tocou na casa de Gilmar de Jesus Silva, de 40 anos, e do outro lado da linha veio o aviso: o frentista aposentado tinha 30 minutos para chegar ao Hospital de Base, em Brasília. Gilmar mora com a família no Jardim Ingá, um distrito goiano às margens de uma rodovia, no Entorno do Distrito Federal. Para chegar ao hospital, leva duas horas e meia dentro de um ônibus. Ele perdia naquele começo de noite, em 2006, a única chance surgida até agora de receber um rim novo. A espera na fila já dura mais de dez anos, mesmo tempo de dependência à máquina de hemodiálise para sobreviver.
— Já desisti uma vez da fila e penso em desistir de novo. Mas não quero ficar preso à máquina — diz o frentista.
A espera do garçom Claudeci Martins dos Santos, 33, é ainda maior. Seu corpo rejeitou o rim que recebeu da mãe em 1997. Já são 16 anos numa fila por um novo órgão. Claudeci vai tanto a uma clínica de hemodiálise em Brasília que até arranjou um casamento no local. Ele está casado há um ano com Luciana Novais, 28, livre das sessões de hemodiálise há três meses depois de receber um rim novo. A fila, para Luciana, durou menos de dois anos.
— Eu fiquei feliz quando surgiu para ela. Todo mundo na clínica se conhece, torna-se amigo e torce um pelo outro — afirma Claudeci.
O Brasil é um país com mais de 41 mil rins, 12,1 mil fígados e 1,9 mil corações transplantados nos últimos dez anos, mas o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) tem falhas que vêm prolongando o drama de pessoas como Gilmar e Claudeci. Uma auditoria inédita da área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU), aprovada no início deste mês, descobriu diversas fragilidades no sistema informatizado que registra os potenciais receptores de órgãos. E fez uma constatação que revela o tamanho de uma agonia: 460 pacientes que precisam de um transplante estão inscritos no sistema há mais de 12 anos e ainda esperam um telefonema, como o que tocou na casa de Gilmar.
Ministério terá que acompanhar os casos
Ao passar um pente-fino no sistema, os auditores do TCU encontraram 460 inscrições feitas antes de 1º de janeiro de 2001 e ainda “ativas”. “Pesquisando asinformações desses receptores nas tabelas com dados sobre os pacientes transplantados, verificou-se que tais receptores não foram transplantados”, concluiu a equipe técnica do tribunal. A descoberta foi registrada no relatório final para que a Coordenação Geral do SNT verifique o que está ocorrendo.
Em plenário, os ministros concordaram com o apontamento e recomendaram ao Ministério da Saúde que avalie e acompanhe a situação desses pacientes não transplantados “em lista de espera por longo período de tempo”. Caberá à Secretaria de Atenção à Saúde — responsável pelo SNT — a implementação de um plano de medidas, com indicação de prazos e de nomes, CPFs e cargos dos responsáveis pelas ações a serem adotadas.
A espera deixou o frentista Gilmar desesperançoso. Por cinco anos, ele desistiu dos exames e acabou fora da fila. Retornou há dois anos. O diabetes retirou por completo a visão e o funcionamento dos dois rins do frentista. As sessões de hemodiálise já duram 11 anos, três vezes por semana, quase quatro horas por dia.
— Depois do transplante, tem muita complicação, muitos remédios e uma dieta própria. Ganho pouco para isso — diz Gilmar, aposentado com dois salários mínimos, casado, pai de duas filhas e avô de uma menina.
Desajuste no ranking de receptores
A equipe médica que cuida do frentista no Hospital de Base em Brasília ressalta que ele pode receber um rim e que não há hipersensibilidade, termo utilizado para definir o alto nível de resistência do organismo a um novo órgão. A saída, apontada pela coordenadora do Serviço de Transplantes Renais do hospital, Maria Cristina Lobo, seria a inclusão desses pacientes numa lista nacional, para que fossem beneficiados por órgãos de outros estados.
— É preciso discutir uma priorização para esses pacientes. O sistema só prioriza quem não tem acesso à diálise — afirma Maria Cristina.
O caso do garçom Claudeci é de hipersensibilidade, com poucas chances de se encontrar um rim compatível. Mas, para a coordenadora do Serviço de Transplantes do Hospital de Base, onde ele é atendido, algumas mudanças podem ser adotadas para contemplar esses pacientes:
— Pode haver melhora na captação e também a inclusão na lista nacional. Um teste com todos os doadores do país amplia as chances.
Além dos 460 pacientes inscritos há mais de 12 anos, a auditoria do TCU encontrou outras falhas, como a falta de registro do motivo da recusa de órgãos e desajustes nos rankings de potenciais receptores de fígado, córnea e coração. A investigação encontrou alterações indevidas na ordem das filas, desconsideração de condições especiais de alguns receptores e transplantes realizados indevidamente, além de nomes repetidos de usuários, perfis conflitantes e mais de uma conta de usuário criada para uma mesma pessoa.
Fonte: Vinícius Sassine/O Globo
Foto: André Coelho/O Globo
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