“Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito tempo. Temos todo o tempo do mundo.
Sempre em frente. Não temos tempo a perder!
Nosso suor sagrado é bem mais belo que esse sangue amargo. E tão sério!
E selvagem, selvagem. Selvagem!”
(Tempo perdido, Legião Urbana)
Aquele já nascera um dia diferente. Vinha de atravessar a cidade inteira em uma madrugada insegura, desde o longínquo aeroporto até minha casa. A cidade estava parada no tempo, observando, atônita, o monstro emergido do seu sistema prisional.
Há tempos, negligenciamos aqueles trancados longe de nós para que não precisemos sequer saber de sua existência. Afinal de contas, para alguns, eles não passariam de selvagens!
Os acontecimentos se arrastaram pela manhã - com certa aflição latente no ar -, até o recebimento de uma ligação do gabinete civil. Eram 13h, aproximadamente. Logo mais, às 16h, haveria uma reunião com todos os envolvidos no imbróglio da segurança pública naquele momento.
Mas, o Ministério Público de Contas não atua na área penal, ao menos não diretamente - ele o faz na mesma medida para qualquer área da Administração Pública bebedora na fonte do Erário. Ainda assim, o tempo não era para explicações. Se me chamavam, existiria alguma razão.
Para lá fui, sempre em frente! Não interessava o que minha agenda de trabalho já tinha programado para aquela tarde.
E o motivo da minha presença ali não demorou a ser revelado. No telão do CIOSP, imagens de helicóptero (ao vivo) de Alcaçuz e das demais unidades prisionais afetadas pelos recentes motins.
À frente da grande tela - talvez o principal legado da Copa do Mundo - a Secretária de Segurança Pública explicava professoralmente a situação para um sem número de autoridades, do Presidente da OAB/RN ao Juiz da Vara de Execuções Penais, ladeados pela Secretária Nacional de Segurança Pública, pelo Governador, e mais tantos outros.
Não havia ali risco iminente de fuga, mas a paz momentaneamente conquistada equilibrava-se sobre gelo fino. Era insustentável manter indefinidamente presos expostos a sol e chuva, calor e frio, em um tratamento ainda mais desumano do que os que eles já estão acostumados a ter.
Obviamente, eles não são santos nem candidatos à canonização. São humanos de carne e osso que, em explosão de fúria alimentada pelos anos sem que os recursos públicos chegassem onde deveriam – não saberia sequer dizer quando se abriu a última vaga no sistema prisional, que só faz amontoar mais gente em espaço já saturado -, destruíram parcela considerável daquilo que o Estado já não conservava.
Por anos, adiou-se a solução do problema por muitos conhecido, pois supostamente teríamos todo o tempo do mundo. Até que, de repente, o tempo sumiu sob nossos pés.
Não mais havia nem mesmo para esperar o célere procedimento de contratação por emergência. “20 dias!”, falou-se. Contratação pública extremamente eficiente em condições normais de temperatura e pressão, mas insuficiente para resolver o problema sem precedentes.
Então, tivemos que construir uma solução que não estava pronta no ordenamento – não havia como esticar o braço e pegá-la na prateleira -, pois, deveria ser lida nas suas entrelinhas. Tudo isso, com o relógio contra nós.
A lei não imaginou que a Administração Pública não tivesse condições de medir serviços a serem executados em seus próprios imóveis, nem que a contratação para uma obra pública não pudesse passar de 24 horas. Mas, estas variáveis estavam bem claras no problema posto sobre nossos ombros.
Ou era isso, ou poderíamos ser chamados a aceitar o risco de ver escorrer um sangue amargo – preço que nenhum de nós estava disposto a pagar e muito menos o Direito, cujo bem maior é e sempre será a vida!
E então marchamos em direção à solução, que não estava pronta e nem poderia estar – a excepcionalidade de um específico estado de necessidade não se encaixa bem com a abstração generalizante da lei.
Com as ferramentas que tínhamos, entregamos um meio para resolver aquele grão de areia no oceano de problemas da segurança pública do Rio Grande do Norte. E, enfim, após 5h de reunião, firmou-se o Termo de Ajustamento de Gestão entre o Ministério Público de Contas e o Governo do Estado, sob os olhos e concordância de toda a cúpula jurídica do RN.
Não será por falta de disciplina normativa que a cidade continuará paralisada, de vidas a negócios, sem saber o que poderia sair de um confinamento precário de seres humanos já suficientemente marginalizados e levados ao limite.
Agora, contratação feita em prazo recorde, mãos à obra, pois não temos ainda mais tempo a perder!
Fonte: Luciano Ramos/Procurador-Geral do Ministério Público de Contas do RN