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terça-feira, 16 de agosto de 2016

DECISÃO DO STF REPRESENTA PREOCUPANTE ESVAZIAMENTO DA LEI DA FICHA LIMPA.

Na última quarta-feira, 10 de agosto, o plenário do Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida por estreita maioria de seis a cinco, impôs uma dura derrota ao controle externo e à festejada Lei da Ficha Limpa. A princípio, conforme a decisão dos ministros do STF, apenas as câmaras de vereadores detêm exclusividade e competência para julgar as contas e a gestão dos executivos municipais, cabendo aos tribunais de contas função meramente opinativa, emitindo parecer de caráter prévio. Contudo, até que se tenha pleno conhecimento do Acórdão – pendente de redação –, não se sabe ainda o alcance desta preocupante decisão.
Os debates transmitidos pela TV Justiça não deixam claro se o órgão maior do Poder Judiciário brasileiro interditou por completo a competência das Cortes de Contas para julgar os Chefes do Poder Executivo, ainda que esses, a par da gestão política, passem a exercer a gestão administrativa e a ordenação das despesas. Ou se apenas retirou de tais julgamentos o relevantíssimo efeito da inelegibilidade, preconizado pela Lei da Ficha Limpa.
Em qualquer caso, importante destacar o gigantesco retrocesso nessa decisão. Sobretudo, na conjuntura atual em que o cidadão, estupefato com a sucessão de escândalos, clama por um controle externo mais efetivo e pelo alijamento da vida pública daqueles em relação aos quais se constatou, em decisão técnica, proferida por órgão neutro, conduta desonesta e/ou que demonstre inaptidão para a condução dos negócios públicos.
Lamentavelmente, ainda que se admita que não tenha sido esse o objetivo dos ministros que compuseram a dita maioria, somente as pessoas cujas ações já mereceram reprovação técnica se regozijam com essa decisão que, mais uma vez, prestou homenagem à impunidade dos prefeitos municipais. Por outro giro, o que se deu foi uma assepsia, na base da “canetada”, na ficha suja de milhares de gestores tecnicamente reprovados no Brasil.
O corolário dessa decisão é um forte enfraquecimento da Lei da Ficha Limpa, pois é sabido que mais de 80% dos casos de inelegibilidade ocorridos no Brasil¹ estão fundamentados no art. 1º da Lei Complementar n. 64/1990, isto é, promanam dos julgamentos prolatados pelos Tribunais de Contas.
É sabido que os órgãos legislativos, sobretudo os municipais, não reúnem condições técnicas e processuais para se desincumbir dessa inesperada atribuição. Ademais, de regra, tampouco ostentam a neutralidade e o distanciamento em relação aos fatos e à figura do gestor, premissas sem as quais não se produz um julgamento justo. Vale acrescentar que o recente histórico relativo ao funcionamento dos órgãos legislativos no país não é exatamente animador para que se espere o triunfo de valores republicanos por ocasião desses julgamentos.
Não obstante, pode-se até compreender a opção do constituinte originário por entregar o juízo definitivo sobre a gestão política dos chefes do Poder Executivo ao Parlamento, como prescreveu a Constituição Federal, no art. 71, ainda assim, porém, condicionado a prévio e indispensável Parecer técnico do Tribunal de Contas. Entretanto, à margem do preconizado no art. 71 da Constituição Federal, eleger como protagonista final do controle externo um órgão político para apreciar questões eminentemente técnicas é um convite certo à inefetividade do controle externo.
Os Tribunais de Contas estão aptos a se pronunciar com definitividade sobre essas questões. Possuem um corpo técnico multidisciplinar, formado por servidores concursados e detentores de alta qualificação; têm seus pronunciamentos fiscalizados pelo combativo Ministério Público de Contas, órgão constitucionalmente previsto para atuar com independência junto às Cortes de Contas (art. 130 da Constituição Federal), cujos membros são igualmente concursados; seus próprios membros (os ministros e conselheiros), mesmo aqueles que não integram as denominadas vagas técnicas, oriundas de concurso, devem possuir “notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública”, conforme o art. 73 da Lei Maior, além de ostentarem as garantias, vedações e impedimentos próprios dos magistrados, premissas indispensáveis para um agir informado pela neutralidade.
A confirmar essa afirmação, pesquisa recente realizada pelo IBOPE² revelou que a população confia nos Tribunais de Contas para o combate à corrupção, embora sinalize que a forma de ingresso na Corte deve ser reconsiderada. Inúmeros e notórios julgamentos recentes do Tribunal de Contas da União também corroboram essa conclusão, por terem atuado com êxito em desvios e interditado uns tantos outros.
Deve-se reconhecer que ainda há um considerável caminho para o aperfeiçoamento dos Tribunais de Contas, a começar pela mudança em sua forma de composição. O ideal é que a composição ocorra sem qualquer tipo de interferência política, talvez por meio de concurso público, ou, pelo menos, como argumenta o cientista político da USP, Bruno Speck, que as vagas ditas técnicas tenham proeminência em relação às demais. Infelizmente, não foram poucas as vezes em que ingressaram nas Cortes de Contas pessoas não detentoras dos requisitos constitucionais com a aquiescência do Poder Judiciário.
Ainda que se deva ter por norte tais ajustes, os Tribunais de Contas, como mencionado, já ostentam condições muito melhores para o controle da gestão pública, comparativamente ao órgão legislativo. Além disso, importante ressaltar que a Constituição Federal é cristalina, em seu art. 71, ao prescrever que é de competência da Corte de Contas o julgamento final das contas de gestão e que a aplicação literal, isolada e inadequadamente ampliada do art. 71, acarretará o esfacelamento da Lei da Ficha Limpa, possibilitando o retorno à vida pública daqueles cuja gestão foi reprovada por ato doloso.
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal tenha a oportunidade de rever esse lamentável equívoco e prefira o itinerário do fortalecimento dos Tribunais de Contas ao de sua fragilização. A sociedade agradecerá!

Fonte: João Paulo Viana é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia (DCS/UNIR) e doutorando em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - Estadão

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