“O que temos hoje no Brasil e na América Latina de um modo geral é a existência de um estado de exceção que governa com violência os territórios ocupados pela pobreza e onde o Judiciário funciona como instrumento de legitimação de processos de impeachment e de perseguição de adversários políticos. Essas medidas de exceção interrompem a democracia em alguns países e, em outros, mantêm um sistema de justiça voltado ao combate a um determinado inimigo, que é apresentado como bandido. A figura do bandido, em geral, é identificada com a pobreza”. A avaliação é de Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional e de Teoria do Direito da PUC-SP, que esteve em Porto Alegre na última semana participando de um debate com a professora de Filosofia, Marcia Tiburi, sobre autoritarismo e fascismo no século XXI.
Autor do livro “Autoritarismo e golpes na América Latina – Breve ensaio sobre a jurisdição e a exceção”, Pedro Serrano sustenta, em entrevista ao Sul21, que o sistema de justiça está substituindo o papel que os militares desempenhavam na interrupção de democracias na América Latina. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, assinala Serrano, fez uma declaração formal da exceção, dizendo que a Lava Jato estava lidando com questões de caráter excepcional e que, portanto, não deveria se submeter às normas gerais, ou seja, à lei e à Constituição. Para o professor da PUC-SP, essa foi uma declaração de suspensão da ordem jurídica em nome do combate a um suposto inimigo. “O que parece estar ocorrendo na América Latina é a substituição da farda pela toga”.
Sul21: Como nasceu a pesquisa que deu origem ao seu mais recente livro, “Autoritarismo e Golpes na América Latina: Breve ensaio sobre a jurisdição e a exceção”?
Pedro Estevam Serrano: O objeto fundamental dessa pesquisa foi identificar como são implementadas, na América Latina, medidas de exceção dentro da democracia. Eu comecei a lidar com o tema do estado de exceção em 2007. Antes disso, já me interessava o tema do Judiciário e da jurisdição em relação a esse tema da exceção. Apesar de vir da área do Direito Constitucional, estou trabalhando hoje, no Mestrado da PUC-SP, com Teoria da Decisão Jurídica. Pesquisando sobre esse tema, deparei-me com a possibilidade de a exceção ocorrer em uma decisão judicial. Neste caso, teríamos uma decisão judicial que, a título de aplicar o Direito, suspenderia o mesmo em nome do combate a um determinado inimigo.
Sul21: Em 2007, você já vislumbrava algum vestígio de medidas de exceção no Brasil?
Pedro Estevam Serrano: Não. Era um interesse mais teórico mesmo relacionado a uma leitura que Agamben e Benjamin fazem do conceito de exceção a partir da obra de Carl Schmitt. Com o surgimento do Estado Moderno, após a Idade Média, e da centralização do poder político no Estado, surge com força o conceito de soberania. Jean Bodin foi o primeiro autor a tratar isso de forma mais articulada e consistente, razão pela qual, muitos o consideram o fundador da ciência política. Bodin entende a soberania como um poder absoluto dos reis, que estabelece uma relação de servidão entre Estado e pessoa, com caráter eterno. A partir das revoluções Francesa e Americana ocorre a secularização do conceito de pessoa. Até então, ela era revestida de um caráter teológico, onde afirmava-se que todos somos filhos do mesmo Pai e, por isso, dotados de uma certa igualdade. As revoluções burguesas secularizam essa noção, trazendo para cada ser humano, pelo simples fato de ser humano, certa proteção jurídico-política, um conjunto de direitos mínimos reconhecidos pelo simples fato de alguém ser humano.
O pensamento autoritário, pré-iluminista, não deixa de existir por conta disso e passa a propor outra forma de soberania absoluta, que consiste em dizer mais ou menos o seguinte: em épocas de paz e tranquilidade, é correto ter esse sistema de direitos como forma de governança social, mas, quando há a ameaça de um inimigo, ou um cataclismo natural, pode ser necessário afastar o Direito para garantir a sobrevivência do Estado e da sociedade. A Constituição de Weimar, de 1919, chamava isso de estado de exceção. Até então, esse tema era pensado principalmente no âmbito da guerra, do conflito entre estados. O inimigo era, fundamentalmente, outro Estado que poderia atacar o meu Estado. Esse elemento está presente em todas as constituições contemporâneas, inclusive a brasileira que prevê estado de sítio e estado de defesa.
Carl Schmitt trouxe essa noção do regime jurídico da guerra para o plano interno, para a relação entre Estado e pessoa, criando essa figura da soberania absoluto a título de atender uma demanda de segurança da sociedade. O Estado nazista acaba se tornando o grande paradigma desse modelo. Hitler assumiu o poder em 1933. Quatro semanas depois, ocorre o incêndio do Reichstag. Hitler acusa os comunistas de ter provocado o incêndio e, para combater esse inimigo, declara o estado de exceção, suspendendo os direitos. É interessante notar que, durante a ditadura hitlerista, a Constituição de Weimar não deixou de vigir. Hitler não negou a Constituição. Ele simplesmente suspendeu seus direitos fundamentais.
Sul21: Isso foi feito por meio de qual instrumento?
Pedro Serrano: Por meio de um ato legal, uma espécie de decreto, aprovado pelo Parlamento. Isso fornece certo paradigma para o que vão ser as ditaduras no século XX. Elas serão governos de exceção, ou seja, ocuparão o poder com uma estrutura de soberania absoluta, numa relação de servidão com a população em geral, suspendendo os direitos de todos, a título de combater o inimigo. Isso foi feito sempre acompanhado do discurso da provisoriedade. A ditadura brasileira e outras ditaduras latino-americanas apresentam, todas elas, esse discurso. Segundo ele, a ditadura duraria pouco tempo, até que o inimigo fosse derrotado. Depois disso, retornaria a normalidade democrática.
Nestes governos de exceção, ocorre a suspensão de direitos, em algum nível, de toda a sociedade. O direito à livre expressão nas ditaduras latino-americanas foi suspenso de plano para toda a sociedade. Se alguém fosse identificado como inimigo, passava a ter o seu direito à integridade física e à própria vida suspenso. O inimigo, neste caso, não era identificado com nenhuma etnia ou num grupo social específico. O comunista podia ser branco, negro, pobre ou rico.
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Fonte: Marco Weissheimer/Sul 21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
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