Sob a maior seca dos últimos 100 anos no Nordeste, parte da maior obra de infraestrutura hídrica do país deve ser entregue em março.
De um caminhão-pipa, a água transborda e vaza, ligeira, calçada adiante. Refresca o chão fervente e umedece as raízes de um pequizeiro que, sob um sol inclemente de 40 graus, colore de verde e amarelo a única praça do povoado de Moderna, em Sertânia, coração do sertão pernambucano. Da varanda de casa, Alzira Umbelina, uma senhora de 68 anos, esbraveja com os dois rapazes que, sem muito cuidado, manuseiam as mangueiras do caminhão e deixam um tanto de água se espalhar pelo chão.
É fácil entender sua irritação. Há três anos, ela só recebe água potável na torneira a cada 15 dias. Com a água salobra tirada do poço aberto na praça é que ela lava as roupas e mata a sede dos poucos animais que ainda cria em seu pequeno sítio, a 2 quilômetros de casa. Há 42 anos vivendo em Moderna, Alzira tem hoje apenas uma vaca e um bezerro, algumas galinhas e poucos bodes magros, mais resistentes do que os bois à tortura da estiagem. As safras de milho e de feijão que serviam de alimento para a família e para os animais deram lugar a um solo arenoso e rachado. Alzira diz não se lembrar de seca pior do que esta. Mas recorda-se bem da promessa que escuta há décadas: “Sempre nos dizem que a água vai chegar, mas a tal da água nunca chegou”.
A 50 quilômetros dali nasce o rio Moxotó, eixo de uma das principais bacias hidrográficas do Nordeste, que receberá a água tão esperada por Alzira: a da transposição do rio São Francisco. Com 2 800 quilômetros de extensão ao longo de cinco estados, de Minas Gerais a Alagoas, o São Francisco detém 70% da oferta hídrica do Nordeste — que, por sua vez, guarda apenas 3% da reserva de água doce do país.
Objeto de estudo de vários governos desde o final do século 19, o projeto de desvio de suas águas em direção ao semiárido nordestino só saiu do papel em 2007, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Passados dez anos de obras, a transposição está prestes a ser concluída — ao custo de 9,6 bilhões de reais, mais que o dobro do orçamento traçado, e sob denúncias de corrupção.
Trata-se da maior obra de infraestrutura hídrica do Brasil. Dividida em dois longos canais, a transposição levará 1,4% da vazão do rio São Francisco, partindo de Pernambuco, a rios não perenes e a 27 reservatórios de Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e também Pernambuco. Na cidade de Monteiro, na Paraíba, ponto final do chamado Eixo Leste da transposição, a água chegará até o começo de março.
Em abril, deverá estar disponível para captação no açude Epitácio Pessoa, conhecido como Boqueirão, responsável pelo abastecimento de 1 milhão de pessoas na região metropolitana de Campina Grande, a segunda maior do estado. Hoje, a Paraíba concentra o maior número de cidades atingidas pela seca. Quase 90% delas estão em situação de emergência pela falta de água. O nível dos reservatórios já é inferior a 10%. “Temos 42 cidades em colapso, sendo abastecidas somente por carros-pipa”, afirma João Azevêdo, secretário de Recursos Hídricos da Paraíba. “É o tipo de paliativo impossível de ser aplicado a uma grande cidade.”
No estado do Ceará, o reservatório de Castanhão, um dos maiores do Nordeste e fonte primária de abastecimento de Fortaleza, está com apenas 6% de sua capacidade de água. É justamente o Ceará que receberá o maior volume de água da transposição — quase 40%. “Se não chover nos próximos meses, a capital precisará racionar para ter água até o final do ano”, diz Francisco Teixeira, secretário de Recursos Hídricos do Ceará e ex-ministro da Integração Nacional.
Os municípios atendidos pelo maior dos canais, de 260 quilômetros de extensão, o Eixo Norte, porém, terão de esperar mais. Isso porque, em julho de 2016, a empreiteira Mendes Júnior, responsável por parte da obra, abandonou o canteiro depois de ser citada na Operação Lava-Jato. O trecho está sendo licitado novamente e a promessa do Ministério da Integração Nacional é que a obra seja concluída até dezembro. O trecho conduzirá a água captada na cidade de Cabrobó, em Pernambuco, a outras bacias hidrográficas importantes, como a do rio Jaguaribe, no Ceará, a do rio Piranhas-Açu, na Paraíba, e a do rio Apodi, no Rio Grande do Norte.
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Fonte: Renata Vieira/Exame.com
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