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domingo, 4 de janeiro de 2015

CRÔNICAS DE UM SUPERSERVIDOR PÚBLICO.

“E malandro é malandro, Mané é mané! Podes crer que é! Malandro é o cara que sabe das coisas. Malandro é aquele que sabe o que quer. Malandro é o cara que tá com dinheiro. E não se compara com um Zé Mané. Malandro de fato é um cara maneiro, que não se amarra em uma só mulher...”
(Malandro é malandro, mané é mané, Bezerra da Silva)

Não é de hoje, nossa cultura valoriza o malandro, como um indivíduo esperto, com a espinha flexível, driblador de limites e controles, até alcançar aquilo que quer. Do lado oposto, muitos cansados de ver a malandragem começam a enxergar-se como um Zé Mané: vale a pena cumprir as leis?
Quando pensamentos deste tipo se generalizam, a sociedade está à beira do abismo, a um passo do salve-se quem puder – e como puder.
Algumas áreas são mais sensíveis à gestação da cultura do levar proveito, especialmente a Administração Pública, sobretudo por conviver com o obscuro e deturpado pensamento de que o bem público não tem dono. Ciente disto, o desafio para quem atua no controle externo é não permitir que se multipliquem os desmandos, sob o risco de contaminação generalizada.
E, neste ponto, um dado em especial chamou a atenção do Ministério Público de Contas do Rio Grande do Norte, obtido às vésperas do fim do ano e ainda a ser aprofundado: a potencial quantidade de servidores com três vínculos ou mais com o Poder Público.
Além de a Constituição Federal proibir objetivamente estas situações, normalmente a multiplicidade de vínculos significa que o servidor não está cumprindo carga horária, recebendo além do trabalho que realmente realiza – sem se descartar a usual hipótese de sequer trabalhar, muito mais grave do que simplesmente “não se amarrar em uma só mulher”.
Tomemos o caso de um multiservidor, detentor de um verdadeiro harém de vínculos com a Administração Pública – sem contar com a iniciativa privada onde também dá o ar da graça. Supostamente, com as ressalvas do contraditório e da ampla defesa por vir, sua força-trabalho divide-se entre 7 vínculos com o Poder Público, distribuídos em pelo menos 6 municípios potiguares – há quem já o tenha visto “servindo” pelas bandas da Paraíba e além.
E é possível que ele não seja o recordista, pois ainda há vínculos de fortes candidatos a serem apurados – em Pernambuco, tem-se notícia de um sultão com 14 vínculos detectados pelo Tribunal de Contas.
Se ele quisesse comparecer regularmente em todos os locais que o dinheiro público lhe remunera, ainda que superasse a vedação física à ubiquidade – não há como estar em dois lugares diferentes ao mesmo tempo – e se deslocasse na velocidade da luz, pois a soma das distâncias entre as cidades pagantes supera 10 horas, mesmo assim, a conta não fecharia. Apesar destes malabarismos impossíveis, encontraria uma barreira intransponível para fazer jus a uma remuneração equivalente a 238 horas semanais.
Ainda não se inventou malandragem capaz de superar o fato de que a semana “só” tem 7 dias e o dia “só” tem 24 horas – o que dá no mínimo 70 horas impossíveis de serem trabalhadas, mas pagas, isso se ele não fizesse outra coisa da vida senão trabalhar para a Administração Pública, nem mesmo dormir.
Felizmente, a maioria dos servidores não se vale destes expedientes – até aqui, não ultrapassa 1% dos remunerados pelo Poder Executivo do RN. Porém, grande é o peso deles nas contas públicas, com significativo impacto de R$ 4 milhões (mais de três vínculos) ou R$ 14 milhões mensais (mais de 60 horas semanais) na folha que o Estado pagou tropegamente em 2014.
Pior, se não houver controle e sanção, os que se sentem um Zé Mané poderão jogar-se nos braços da malandragem. E aí é o caos. Podes crer que é!

Fonte: Luciano Ramos é Procurador-Geral do Ministério Público de Contas do RN/http://tribunadonorte.com.br/

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